Há segredos que não se desvendam.
Segredos que sabemos não com o cérebro mas com os sentidos.
Segredos que estão em nós e que só alguém pressente.
David Mourão Ferreira
"O meu cão tem um medo louco de ser abandonado. Não abandonado de abandonado, ou seja, despejado no meio da rua e de um mundo para o qual não está preparado, mas abandonado no sentido de deixado sozinho. Quando a família sai de casa ou do carro, o cão chora e ladra pedindo que o levem com eles. A choradeira e os latidos e ganidos são tantos que quem passa ao lado pensa que o cão está a ser torturado. Nada, na vida curta deste cachorro, que anda sempre com toda a gente para todo o lado, o pode levar a suspeitar que vai ser abandonado. Pelo contrário, o cachorro tornou-se o centro das atenções e é um ídolo popular entre adultos e crianças, que o mimam excessivamente. Nunca foi deixado para trás, nem esteve num canil. Nunca está sozinho. Observando o seu terror da solidão e do abandono, chego à conclusão que aquele terror e aquele medo devem ser ancestrais, cromossómicos, genéticos, ou o que quer que seja. Ao contrário dos gatos, os cães não apreciam a independência e a solidão e por isso muitas pessoas os preferem aos gatos. Ao contrário dos gatos, as pessoas também não apreciam a independência e a solidão.
Esta é a altura do ano em que as pessoas abandonam os animais. Vão de férias e, antes de partirem, o cachorro que se revelou tão bom companheiro no Inverno passa a empecilho no Verão, sendo deixado, como quem não quer a coisa, num parque da cidade ou numa praia dos arredores. Salta bobi, salta, sai do carro bobi, e o bobi vê pela última vez a cara e as festas dos donos. A única salvação destes bichos abandonados é o apelo das crianças, quando as crianças existem, embora eu ache mau sinal ter crianças quando se é capaz de abandonar um bicho ao Deus dará. Quem abandona um cão, abandona um filho ou um pai. Esta é também a altura do ano em que os velhos são abandonados nos lares de terceira idade, nos hospitais, nos asilos. Paizinho, nós depois voltamos em Setembro, e o paizinho, com os olhos revirados de terror, sabe que está condenado.Uma vez conheci num lar uma velhota que tinha sido lá deixada pela família há mais de doze anos. Pagavam o lar e nunca a visitavam. Tinha a velhota quatro filhos e um ror de netos e nem um deles se dignava aparecer e perguntar como ia indo. A velhota tinha-se resignado ao abandono e, lúcida como estava, contou-me que nem as fotografias da família queria por perto. Tinha deitado os retratos e as molduras fora, não lhe serviam para nada, e o tempo tinha passado, decerto estavam irreconhecíveis. Os netos grandes, os filhos velhos. Doze anos sem ver a mãe, a avó, a tia, a irmã. Doze anos, uma eternidade. A velhota contava isto sem sentimentalismo, as lágrimas estavam secas ao canto do olho vermelhusco, escondido pelas rugas da pele. O meu marido, que Deus tenha, teve mais sorte que eu, morreu cedo, fiquei viúva aos quarenta e tal anos. Nos primeiros tempos tinha ficado à espera, depois habituara-se, nunca mais viriam, nem sequer quando morresse. Os funcionários do lar também se tinham habituado, aquilo estava sempre a acontecer, a velhota não era excepção. A velhota tinha, contudo, a esperança de que um dia os filhos dos filhos dela fizessem o mesmo aos pais deles, para verem como doía.
Os cães não se queixam mas, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa, nos meses de Junho, Julho e Agosto, os cães são deixados à solta, com coleira, talvez as vacinas em dia, e nenhuma identificação. Alguns são recolhidos pelas oficinas de automóveis da Quinta do Noivo, e por ali andam, perdidos nos primeiros dias, com o pêlo lustroso e lavado e os sinais da raça. Aparece de tudo, sobretudo cães grandes, aqueles que dão mais trabalho e comem mais. Golden retrievers, labradores, pastores alemães, cocker spaniels, lassies e laicas e bobis vários, com e sem pedigree, rafeiros e finaços. Damas e vagabundos. Cães aos quais foi aberta discretamente uma porta do automóvel, a caminho da auto-estrada, na secreta esperança de que não sigam o carro muito tempo ou sejam atropelados pelo próximo carro. Um dos mecânicos, uma boa alma que me contou isto e que, com os colegas de ofício, alimenta e toma conta de vários cães, gastou no outro dia 12 contos no veterinário com uma cadela a que se afeiçoou, abandonada como os outros, e que dorme debaixo dos carros, e aprecia o conforto dos motores quando ainda estão quentes, no tempo frio. A cadela segue-o para todo o lado, no terror de ser abandonada, e ainda tem a coleira que atesta a sua pertença a uma destas saudáveis famílias ou seres humanos que largam os cães na avenida. Os cães acabam uns com os outros, fazendo-se companhia na sorte comum e, provavelmente, congratulando-se por terem escapado das rodas de um camião de longo curso.
Sempre achei que os cães sabiam mais sobre as pessoas do que as pessoas, e que não é preciso ler o livro de Peter Singer, «Animal Liberation», para dar aos animais a capacidade de sofrimento e estatuto moral que tanto lhes queremos negar. Os cães da Quinta do Noivo e de Chelas teriam umas coisas para dizer à velhota do lar, e talvez se entendessem bem. Ao contrário dos cães, os velhotes não podem contar com a generosidade e a compaixão dos mecânicos de automóveis que guardam o saco da ração por baixo da parede enfeitada com aqueles calendários das oficinas, mulheres loiras e seminuas a fazer boquinhas. Ao contrário dos cães, os velhos não estão por sua conta, estão à mercê do mundo, e essa não é uma boa posição na sociedade ocidental, e em particular na sociedade portuguesa actual, que tanto se orgulha do seu católico sentido da família. Uma visita pelos lares, de velhos e de deficientes, durante as férias dos portugueses, é bastante instrutiva sobre a capacidade para amar dos portugueses. E há ainda os profissionais disto, os que quando voltam de férias arranjam outro cão, até ao Verão seguinte."
Faz hoje uma semana, andava eu por terras da China, província de Yunnan, com seis amigos quando, após mais de 6 horas de caminhada montanha acima, montanha abaixo (uns a pé, outros de burro), fomos, no regresso pela mesma estrada que fizéramos dois dias antes, de novo confrontados com derrocadas de pedras.
Se à ida a situação já tinha sido emocionante - pelo seguro, e para facilitar a vida ao "Dentes" condutor do nosso autocarro, atravessámos a pé por cima dos imensos calhaus acumulados e ficámos na expectativa a ver as tentativas para fazer passar o veículo que, às tantas, estava de tal forma torto que voltou para trás e foi necessário remover pedras e tornar o solo menos irregular... uma queda pelo precipício significaria morte certa - no regresso estava assustador!
Havia carros, autocarros, camiões TIR parados sem passar há mais de dia e meio; enquanto alguns ficávamos no autocarro, outros foram para uma zona mais próxima da derrocada ver o que se passava; ao regressarem as notícias eram desanimadoras: impossível transitar porque tentá-lo era brincar com a sorte... A alternativa era fazer mais de 600 quilómetros por estrada de montanha para chegar ao hotel que estava apenas a cerca de 10...
Ouvir isto, quando se está com os pés encharcados há horas graças à caminhada pela neve e quando a temperatura ronda os 3 graus numa altura em que desata a chover e a nevar, é desesperante.
Mas a Natureza é madrasta e mãe... e lá veio alguém dizer que as fases de queda se alternavam com períodos de estagnação; o que era preciso era contabilizar o tempo de derrocada e o tempo de acalmia, como as séries de 7 ondas com que o mar nos brinda e que permitiram ao protagonista de Pappillon fugir da ilha em que estava encarcerado... E lá fomos nós de mochilas e malas e máquinas fotográficas, uns mais apreensivos que outros.
Já vivi tufões grau 10, que fizeram cair quadros das paredes em minha casa, já vi as marés vivas arrancarem pedras dos muros da Marginal; no dia anterior tínhamos ouvido avalanches de neve; mas o que se nos deparou era, de facto, impressionante e atemorizador: tudo calmo pela encosta abaixo... de repente começava como que um rio de pequeníssimos seixos a deslizar e quando dávamos por nós estávamos entre o incrédulo, o fascinado e o assustado a ver pedregulhos enormes a tombarem e a desfazerem-se ao bater na estrada, quais bombas a largarem estilhaços em todas as direcções, antes de seguirem o seu caminho pela encosta seguinte também a pique.
E no meio de tudo alguns "loucos" que se aventuravam entre as pedras que continuavam a cair e os que ao volante de camionetas resolviam carregar no acelarador e passar também, motivando novas derrocadas consequência da trepidação provocada.
Por fim lá decidimos, um a um, testar a sorte, sempre atentos não fosse algum calhau perdido apanhar-nos pelo caminho... e assim todos passámos, pé aqui pé acolá, a tentar não torcer os tornozelos e a não cair por cima de um monte de pedregulhos de tamanhos desiguais.
O alívio foi enorme ao juntarmo-nos todos do outro lado onde já estava uma carrinha à nossa espera. E foi, entre gargalhadas catárticas, o recordar o que, a quente, alguns tinham dito: "Eu não posso passar com o meu marido" (porque têm 3 filhos), ou "Tenho que passar com a minha mulher porque não consigo ficar a olhar para ela" (ela ficou de lágrimas nos olhos), ou "Não vim para esta viagem para pôr a minha vida em perigo", ou "Não sei que vos diga... devo ser inconsciente porque não consigo ter medo duma coisa destas..."... "É, és completa e totalmente insconsciente!".
Enfim foi um momento emocionante (mas não excessivamente dramático) que a juntar à viagem do dia seguinte, por alvas estradas cortadas devido ao nevão que caíu incessantemente durante horas, a sítios e paisagens deslumbrantes e gentes encantadoras tornaram este passeio por terras do Império do Meio inesquecível.
Mas o grande, grande "amor da minha vida" foi o Tibet...